Desde de a década de setenta, autores como Guillermo Bonfil Batalla consideram que o indígena na America Latina estaria inserido em uma categoria social extraordinária, posto que mesmo depois do fim das colônias, as comunidades continuaram sendo oprimidas e controladas politica e economicamente pelos Estado-nações que se formaram. Garzón López (2013) analisa estes autores e cunha o termo „categoria colonial“ para debater a posição ambígua que povos indígenas tem nas sociedades contemporâneas, visto que estão inseridos ainda dentro de estruturas coloniais, especialmente sob uma ótica epistemológica. Estes conceito está agregado à tradição de estudos decoloniais, em grande parte representada por Aníbal Quijano e Walter Mignolo.
Segundo a idéia de categoria colonial, grupos indígenas são percebidos e se movimentam juridicamente (tutelados pelo estado) em espécies de ilhas dentro de estados-nações, com o mesmo funcionamento estrutural e institucional que finalmente os sujeita à violência colonial mesmo após o fim oficial das colônias. Ainda que muitos países latino americanos tenham transformado suas constituições em documentos que atestam plurinações, o que está juridicamente garantido nao é uma realidade no cotidiano e muitas garantias básicas tem que ser disputadas em todos os âmbitos. Além disso, as maneiras de exercer danos morais e emocionais e opressões epistemológicas se transformam ao longo dos séculos, mas não cessam. Essa dominação é praticada de maneira contínua em situações onde corpos são racializados e estigmatizados na America Latina, como no caso dos descendentes de escravizados africanos. No caso indígena, partindo do princípio de que em algumas regiões, para determinados grupos, malhas comunitárias fortes e práticas ancestrais se mantiveram, enquanto em outras, as comunidades estão bastante inseridas e assimiladas às sociedades ocidentais, não se pode homogeneizar ou nivelar conceitos e experiencias. Qualquer estudo (especialmente aqueles direcionados a políticas públicas) precisaria partir de análises das relações sociais, econômicas e históricas de forma regional, especifica e qualitativa, e este artigo não pretende abarcar as complexidades e fricções de um estudo de caso. A proposta aqui é apresentar de maneira abrangente a questão dessa situação no Brasil, para investigar experiencias de sujeitos indígenas como experiencias transnacionais, baseada em depoimentos de alguns escritores com essa vivência.
Sujeito indígena transnacional?
Um grande campo de estudo para a antropologia atualmente são processos migratórios e o tipo de relações humanas e políticas que os mesmos desencadeiam. As interligações com este tema tão pungente na contemporaneidade são muitas e múltiplas, e várias disciplinas tem interesse em pesquisar as conexões transnacionais sob óticas diversas, como por exemplo a economia ou o direito. Dentro das ciências sociais o estudo de processos migratórios já passou por diversos momentos desde seu início em torno de 1930/ 1940, onde mudou de foco de interesse, perspectiva e de conceituação metodológica ao longo das décadas. O artigo „Antropología de la frontera, la migración y los procesos transnacionales“ de Everardo Garduño (2003) traz um panorama da antropologia transnacional e como esta vertente hoje coloca em questão categorias de análise passadas, exercitando um „radical cuestionamiento de los tradicionales enfoques binarios de la antropología y de sus categorías de análisis territorialmente restringidas.“ Como consequência deste questionamento, revisa-se a própria noção de fronteira e como ela se dá, fazendo com que as fronteiras passem a ser categorizadas como rígidas ou porosas, mais tarde como literal e aliteral ou fronteira centro e periférica ou noção de comunidades transnacionais. (Garduño 2003).
A situação social de indígenas no Brasil pode também ser analisado sobre essa ótica da comunidade transnacional a que Garduño (2003) se refere ao citar Kearney (1991:68), pois apesar de não existir uma fronteira nacional política entre grupos indígenas e não indígenas, existem muitas marcações que são verdadeiros contratos sociais. Apesar de serem de natureza fluida e muitas vezes irreconhecíveis a primeira vista para um olhar não treinado, existem fronteiras que se fazem identificar de imediato para quem está envolvido nestas relações cotidianamente. O corpo indígena é racializado e tratado como um estranho fora de suas comunidades e essa percepção de si molda também o caráter social e político daquele que está sendo alterizado, forçando-o a ver-se também ele como estranho ou estrangeiro, apesar de encontrar-se em seu território de origem.
Em uma entrevista, o filósofo e escritor (indígena brasileiro da etnia Krenak) Ailton Krenak afirma ser um „refugiado dentro do próprio território“ . Essa contradição parece ser compartilhada entre a maioria dos escritores indígenas, talvez por ser a literatura indígena, entre outras coisas, uma ferramenta de tradução e denúncia. „Brasil, o que faço com a minha cara de índia?“ pergunta Eliane Potiguara ao país em sua poesia „Brasil“, revelando que aqui o interlocutor (o próprio país) representa o contrário de uma pátria acolhedora ou uma idéia de pertencimento. Já o autor Daniel Munduruku aponta em entrevista que „Ser brasileiro significava abandonar o “ser munduruku” para “ser brasileiro” . Eram duas coisas que se digladiavam, porque não cabiam duas identidades em uma mesma pessoa“(2023). Essa experiencia da dupla cidadania é uma construção violenta de exclusão e que tem lastro na realidade dos povos indígenas contemporâneos. Para serem tolerados como cidadãos, foi necessário abdicarem de suas cosmologias, tradições, saberes e de preferência, acima de tudo, de suas terras. Muitas vezes o território que resta é um que se dá no âmbito da memória: „A gente não tem uma cartografia para se deslocar, definindo que o lugar de onde a gente resiste é um lugar fundado na nossa memória.“ As discussões sobre o que significa nacionalidade, como ela é construída e atua no sujeito são reflexões que também permeiam esta discussão, mas extrapolariam este artigo.
Daniel Munduruku e outres autores indígenas como Truduá Dorrico apontam também a importância da escrita e da literatura como local de resistência coletiva, ao lidarem com ferramentas e técnicas ocidentais para preservação de seus saberes ancestrais. Ao transcrever e traduzir narrativas orais para o papel, a literatura se torna simbolicamente um território (re)conquistado dentro de um espaço predominantemente branco, onde se exercita a resiliência e a denúncia, mas também a construção de indivíduo. Dorrico acredita que a autoria „atua na emancipação do indígena enquanto sujeito, tensionando o regime simbólico do país, que silencia suas vozes e reserva às culturas indígenas um papel e um lugar marginais“ (Dorrico 2018: 228) ao mesmo tempo que atua para desconstruir pre-concepções sobre seus povos na sociedade não-indígena e construir pontes de diálogo intercultural, interétnico, transnacional.
Um hipotético sujeito indígena tem muitas facetas e exerce funções sociais diversas quando está atuando na transnacionalidade. Quando aldeiado, ele é um agente dentro da sua comunidade, portanto sujeito às regras e leis desta, ao mesmo tempo que é um cidadão perante os tribunais do país onde se encontra registrado oficialmente. Carrega dois nomes, ou mais, um que consta no documento oficial e outro(s) nome indígena falados em seus idioma e por seu grupo. Fora de sua aldeia é considerado pela sociedade não indígena como um bloco monolítico que representa todos os povos originários. A complexidade desse posicionamento faz com que a vivência indígena tenha especificidades incomparáveis, e que qualquer análise sobre migração precise levar em conta não somente processos de deslocamento migratórios internos ou externos, mas também as relações conturbadas de povos indígenas os Estados – nações. Identificar pontualmente quais as intersecções prováveis dos posicionamentos sociais, políticos e econômicos de comunidades indígenas e abarcar nos debates as posições liminares destes indivíduos são práticas importantes na criação de políticas públicas, especialmente na fomentação de projetos pedagógicos e culturais que entendam a alteridade como um projeto de país a ser encorajado.
Bibliografia
Quijano, Aníbal 2005: Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. CLACSO, Buenos Aires, Argentina.
Garzón López, Pedro 2013: Pueblos indígenas y decolonialidad. Sobre la colonización epistemológica occidental. Andamios. Revista de Investigación Social, vol. 10, núm. 22, mayo- agosto, 2013, pp. 305-331 Universidad Autónoma de la Ciudad de México Distrito Federal, México
https://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-00632013000200016
Krenak, Ailton 2010: Entrevista com o líder indígena Ailton Krenak realizada para a publicação educativa da 34ª bienalhttps://bienal.org.br/entrevista-com-o-lider-indigena-ailton-krenak-realizada-para-a-publicacao-educativa-da-34a-bienal/
Potiguara, Eliane 2018: Metade Cara, Metade Máscara. Grumin Edicoes. Rio de Janeiro.
Baniwa, Gersom 2006: „O Índio Brasileiro: o que voce precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje“. Série via dos Saberes nr. 1, Coleção Educação para Todos. Edição MEC/ UNESCO.
Garduño , Everardo 20023: „Antropología de la frontera, la migración y los procesos transnacionales“ Frontera Norte, vol. 15, Núm. 30, Julio – Diciembre de 20023
Kearney, Michael 1991: „Borders and Boundaries of State and Self at the End of Empire”, Journal of Historical Sociology, vol. 4, núm.1, 1991, pp. 52-74.
MAGGIE, Yvonne; REZENDE, Claudia Barcellos (Org.). Raça como retórica: a construção da diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 460 p.
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