A noção de espaço participa, junto com a noção de tempo, de nossas formas primordiais de orientação no mundo físico e de organização social da percepção sensível da realidade observada e experienciada. Por ser tão genuína da existência humana, a categoria espaço traz consigo uma espécie de auto-evidência, uma obviedade em seu sentido, e ao mesmo tempo, por isso, uma indeterminação substancial. Não é fácil definir o que é espaço. O espaço é, entretanto, objeto de apreciação, e também objetivo, dentro de distintos campos disciplinares, como a Física, a Filosofia, a Geografia, a Sociologia, a Antropologia, a Arquitetura – apenas para citar alguns –, nos quais ele pode ser pensado, observado, apreendido, mapeado, significado, concebido, enfim, quando envolvido, e de forma relacional, em um âmbito, ou em um recorte, de referências.
Este artigo se dedica a perpassar por algumas concepções de espaço no âmbito dos estudos antropológicos e etnográficos, em especial os que versam sobre migração, tendo em vista contribuições investigativas dessa área nas quais a categoria espaço adquiri importância consistente em um recorte de análise para a abordagem e compreensão dos processos migratórios1. Desse modo, o artigo recorre a três investigações etnográficas em que o espaço é trazido ao centro da perspectiva investigativa, analisado e conceituado em – e através de – um contexto específico, não como um dado da realidade empírica, uma existência inerte e uma categoria autoevidente, ou mera presença física e material diante da qual perpassam fluxos migratórios e relações e interações sociais acontecem, mas sim como partícipe e constitutivo de dinâmicas complexas e muitas vezes conflitivas que revelam, nas escalas e nuances de relações experimentadas, vivenciadas e estabelecidas por diferentes agentes e atores sociais, também suas dimensões enquanto práticas produtoras de espaços. Nessas perspectivas, o espaço é observado em relação às praticas sociais que o constituem e lhe são constitutivas, como uma categoria (inter)relacional e processual, ao mesmo tempo produto, produtor e reprodutor de práticas sociais que o (re)configuram materialmente e lhe atribuem sentidos. Sobretudo, o espaço é entendido como uma construção social nas suas dimensões física (territorial e material) e simbólica.
I.
As antropólogas Soledad Álvarez Velasco e Valentina Glockner Fagetti (2018) se valem do conceito de “espaço abstrato”, formulado pelo filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre (1974; 1991)2, para pensar, no âmbito dos estudos sobre migração, substancialmente os sujeitos em movimento como produtores do espaço. Em estudo a respeito da mobilidade transnacional de crianças e adolescentes, as autoras buscam meios de apreensão e compreensão dos efeitos dessa mobilidade na configuração e reconfiguração espacial do que chamam de “corredor migratorio extendido”3,compreendido geograficamente e como um percurso desde a Região Andina, passando pela América Central e pelo México até os Estados Unidos.
O designado “corredor migratorio extendido” constitui em suas dimensões territorial e social conceitualmente um “espacio geográfico transnacional”. Isto significa, em um primeiro momento, um espaço que ultrapassa ou excede limites e fronteiras de Estados nacionais, mas não apenas territorialmente. O caráter transnacional diz respeito também às práticas humanas que historicamente produziram e produzem esse espaço, que o configuraram e o (re)configuram continuamente. Tais práticas são fundamentalmente os movimentos migratórios internos e internacionais. Junto com eles, ou paralelamente a eles, esse espaço também se configura e se reconfigura pela movimentação de mercadorias, de bens e de capital.
A produção desse “espacio geográfico transnacional”, o “corredor migratorio extendido”, é compreendida historicamente e abordada na atualidade da pesquisa como “un proceso transnacional y multiescalar de movilidad y de construcción social del espacio”. É uma produção que incorpora outras dimensões, igualmente espaciais, de extensões, proporções e qualidades distintas – por isso o termo “multiescalar” –, as quais compreendem os níveis e âmbitos do global, do regional, do local, do familiar, do bairro, da vida cotidiana, e alcança as dimensões do corpo e do subjetivo (Velasco; Fagetti, 2018, p. 54). São dimensões, ou espaços, que se interrelacionam, interagem e se afetam mutuamente, consequentemente se produzem e se transformam por intermédio dessas relações. Esse complexo espacial multidimensional e inter-relacional, contemplado como dinâmicas sociais e sócio-espaciais, isto é, conjunto aos agentes e atores que o produzem na gama das relações que entretecem entre si e com o espaço, é o que fundamenta sua aproximação com a categoria analítica de “espaço abstrato” proposta por Henri Lefebvre (1974; 1991). E o que fundamenta igualmente a relevância da concepção de sua existência enquanto realidade física, material, que é produto e simultaneamente produtora das práticas sociais que lhe são constitutivas. Para as autoras da pesquisa, inscrever a existência desse “corredor migratório estendido” e pensá-lo como um “espaço abstrato”, portanto, significa uma possibilidade de compreender uma realidade material e social que excede os sentidos de uma representação geográfica para tornar visível um espaço que é, sobretudo, constructo de relações sociais e de poder, no qual diversas formas de mobilidade – de pessoas, de bens etc. – é o fator determinante (Velasco; Fagetti, 2018, p. 54). No conjunto dessas relações sociais e de poder, o “espaço abstrato”, examinado no âmbito dos movimentos migratórios, compreende tanto as dinâmicas locais e globais de opressão, de violência e de desigualdade, quanto práticas ou dinâmicas de contestação e de resistência que emergem como respostas (Velasco; Fagetti, 2018, p. 55) e que interatuam na configuração e reconfiguração do espaço, na realidade e na realização desse “corredor migratorio extendido”.
II.
De uma compreensão semelhante a respeito do espaço parte também a abordagem e a analítica propostas por Bruno Miranda, Jana Sosa Gundelach e Daniela Rodríguez (2023) em estudo a respeito do trânsito e da presença de migrantes africanos e asiáticos na cidade de Tapachula, localizada na região da fronteira sul do Estado mexicano, e a concepção contextual e situacional daí decorrente de “espacio fronterizo de espera”, bem como, mais abrangente, de “espacios de espera”.
Os(as) pesquisadores(as) entendem a categoria espaço como “una entidad relacional”, que é “producida y reproducida a través de prácticas, representaciones y vivencias”4. Novamente, o espaço não é aqui uma categoria inerte e autoevidente. O espaço que se observa aqui é ao mesmo tempo “producto y soporte de las relaciones sociales”, as quais são, por sua vez e inevitavelmente, “atravesadas por jerarquías, inclusiones y exclusiones” (Miranda et al., 2023, p. 150).
No contexto migratório em que a pesquisa se envolve, os “espacios de espera” correspondem a conformações socioespaciais constitutivas e partícipes do que os(as) autores(as) identificam como um processo de “remodelación socioespacial del territorio mexicano”, incidente sobretudo nas suas regiões fronteiriças norte e sul, e que colabora a lançar uma perspectiva sobre essas regiões “más allá de su uso como espacio de tránsito centroamericano” em direção, justamente, “hacia la producción de nuevas categorías de espacio social” (Miranda et al., 2023, p. 145). Os “espacios de espera”, como uma dessas novas categorias, são pensados relacionados com as dinâmicas socioespaciais singulares das regiões de fronteira, sobretudo, se é possível assim dizer, com as práticas de produção de fronteiras desempenhadas prioritariamente por agentes estatais e num âmbito burocrático – na forma de mecanismos de controle e contenção migratórios –, mas que repercutem espacialmente.
Desse modo, pela investigação etnográfica na cidade da Tapachula, os(as) autores(as) concebem primeiramente a existência do que designam “espacio fronterizo de espera”. Um espaço mapeável, “producto” – assim definem – “de las prácticas de poder soberano del Estado y de los actores locales y globales de la gobernanza migratoria”, nos quais as relações de poder, por conseguinte relações de hierarquia lhe são constitutivas (Miranda et al., 2023, p. 163). A fim de “ralentizar y disuadir el tránsito migratorio” (Miranda et al., 2023, p. 145), esses agentes ou atores lançam mão de formas de contenção e disciplinamento não apenas espaciais, como também temporais. É esse aspecto espaço-temporal o que justamente fundamenta a razão dos “espacios de espera”.
A concepção de “espacios de espera” no contexto migratório implica diretamente a experiência dos sujeitos em movimento, a experiência existencial do trânsito, e compreende a mobilidade como prática não dissociável de condições de imobilidade – entendidas como “todas las paradas” ou “interrupciones voluntarias e involuntarias” no trânsito migratório (Miranda et al., 2023, p. 149). A espera, nessas condições, é considerada – e se mostra – uma prática ativa, social e individual, de gestão do tempo, que ademais repercute espacialmente. Esses “espacios de espera” são assim condicionantes e também motores de “diversas formas y manifestaciones de agencia y politización” (Miranda et al., 2023, p. 151), consequentemente do desenvolvimento de práticas socioespaciais dos sujeitos e grupos sociais em trânsito, ou em espera, que em suas (i)mobilidades interagem e transformam espaços e lugares frequentados nas localidades de passagem ou de permanência mais ou menos provisórias. Tratam-se de práticas relacionais de apropriação, de significação e ressignificação de lugares, que os configuram e reconfiguram continuamente; e de práticas, pode-se compreender, produtoras de espacialidades, ou seja, práticas que pressupõem demarcações de caráter espacial mais ou menos manifestas e mais ou menos provisórias a partir da mobilização, por parte de indivíduos e grupos étnicos, do que os(as) autores(as) chamam de “marcadores sociales de diferencia”, que orientam as interações e conformam a dinâmica da convivência na partilha desse “espacio de espera”.
III.
Ambas as pesquisas até aqui abordadas podem ser compreendidas no campo dos estudos sobre migração transnacional. Elas incorporam implícita ou explicitamente, em algumas das correspondentes descrições das práticas socioespaciais envolvidas no trânsito migratório e, consequentemente, na produção de espaços, a formação dos chamados “espaços sociais transnacionais”. A categoria de espaço social transnacional se refere às dimensões das relações sociais e interações das pessoas migrantes entre seus países de origem e de destino, são relações estendidas que vinculam localidades implicadas no trânsito migratório e constituem um conjunto de práticas relacionais que se conformam alheias a fronteiras territoriais ou para além delas. Essas práticas compreendem, por exemplo, a manutenção de vínculos sociais e afetivos da origem juntamente à construção de novos no destino, bem como a circulação de objetos, bens, mercadorias, informações.
O último estudo que gostaria de trazer neste artigo complexifica a prática dos “espaços sociais transnacionais” ao desdobrá-la pelas vias das emoções associadas aos lugares implicados no trânsito migratório. O antropólogo Shinji Hirai (2015) sugere um enfoque etnográfico nas maneiras como os sujeitos praticam esses vínculos transnacionais a fim de explorar, com profundidade, “el horizonte donde el sujeto de estudio percibe, experimenta e interpreta la realidad social” no processo migratório (Hirai, 2015, p. 95). Emoções manifestas como “desejo de progresso”, “medo”, “nostalgia”, “incerteza” e “solidão”, por exemplo, lançam luz a tais experiências e percepções subjetivas. Por meio de uma “etnografía multilocal” realizada na cidade emissora de Jalostotitlán, em Jalisco-México, e em outras localidades na Califórnia – EUA, Hirai investiga os sentidos da nostalgia e do terruño5 a partir das representações sobre a terra natal. Essas representações constituem simbolizações que se deixam ver e ler materializadas na linguagem – em relatos, letras de música, poesias – e na produção e coleção de imagens e objetos. Assim, seguindo os símbolos do terruño, como se propõe a investigação, o antropólogo relaciona essas representações sobre a localidade de origem em uma analítica que a compreende e a distingue em três níveis, ou em três modalidades, de práticas espaciais sobre o terruño.
Utilizando as esferas da produção do espaço propostas por Henri Lefebvre (1974; 1991), as de “espaço experimentado”, “espaço percebido” e “espaço imaginado”, e também contribuições teórico-conceituais do geógrafo David Harvey (1989; 2004)6, Hirai (2015, p. 100) propõe as existências do “terruño como espacio físico”, do “terruño simbólico” e do “terruño imaginario”. Trata-se de “tres niveles de terruño” que conformam, juntos e de maneira inter-relacional, as percepções e relações que as pessoas migrantes mantêm e simultaneamente constróem com o lugar. É um modelo analítico de relações que envolvem o imaginário, a memória e a imaginação, e o espaço físico existente. O interessante desse modelo é a possibilidade de observar como essas esferas, ou níveis, se comunicam, se inter-relacionam e se afetam mutuamente.
O “terruño como espacio físico” diz respeito ao terruño como lugar existente, materialidade física localizada geograficamente. Também significa o espaço que as pessoas migrantes vivenciaram, realizaram suas práticas materiais e do qual se lembram. Hirai (2015, p. 103) pontua que “las experiencias y las observaciones” que tiveram e têm os indivíduos migrantes desse espaço são o que “nutren las memorias y la imaginación sobre ese lugar”. Justamente de tais memórias e da imaginação decorre a construção do “terruño imaginario” como “la imagen mental del lugar de origen”, na qual as pessoas migrantes mobilizam os dados lacunares de suas memórias e os complementam com a imaginação. Seria uma imagem, por isso, dificilmente coincidente com a atualidade do terruño físico (Hirai, 2015, p. 101). O “terruño simbólico”, por sua vez, compreende as formas de representação do “terruño imaginario”, em que a imagem mental se torna visível ou legível, comunicável, enfim, num processo de simbolização ou materialização (Hirai, 2015, p. 102).
Nos modos como esses níveis se afetam mutuamente, o sentido da nostalgia perpassa pelas distintas práticas e se torna apreensível como uma emoção associada ao lugar de origem. De acordo com Hirai (2015, p. 103), a nostalgia é um estado anímico que colabora exemplarmente para que as experiências que os indivíduos tiveram no passado com esse lugar sejam lembradas e imaginadas como elementos que contrastam com a sua vida presente, o que concorre exemplarmente para a construção do “terruño imaginario”. Assim como também “las representaciones pueden influir en la construcción del terruño imaginario”, na medida em podem afetar, enquanto imagens, as percepções de uma dada realidade (Hirai, 2015, p. 102). O “terruño imaginario”, por seu lado, pode repercutir enquanto práticas materiais sobre o lugar existente, reconfigurando o próprio espaço físico – o que constitui, para Hirai (2015, p.103), “la más notable de las relaciones entre estos tres niveles de terruño”. De acordo com o antropólogo, o „terruño físico“ é afetado através dos símbolos que conformam o „terruño imaginario„, num processo em que “algunos espacios físicos pasan por diferentes niveles de representación y se convierten em un conjunto de símbolos y discursos aterrizados e ‘incrustados’ en los lugares físicos”, os quais, por sua vez, organizam “las memorias, la imaginación y los sentimientos de los individuos sobre ese lugar”, e acabam por construir, em vista disso, “un imaginario colectivo dominante” (Hirai, 2015, p. 103).
Notas
1 Não constitui esta escrita uma tentativa de abarcar de forma abrangente o conjunto conceitual relativo à categoria espaço nos estudos sobre migração, mas sim uma tentativa de elencar algumas concepções como uma contribuição de caráter introdutório a investigações envolventes nesse campo do conhecimento. Ela pode ser sugerida, no espaço deste Blog, como uma espécie de index, passível de ser continuamente complementado e atualizado.
2 Em obra intitulada La production de l’Espace [A produção do espaço], publicada em 1974. A data seguinte se refere à edição e tradução para a língua inglesa consultada pelas autoras.
3 Todos os conceitos e citações diretas dos textos consultados e referenciados neste artigo (indicados entre aspas e em itálico no corpo do texto) foram transcritos como nos escritos originais em espanhol.
4 É uma compreensão formulada a partir das contribuições teórico-conceituais de Henri Lefebvre, na já mencionada obra La production de l’Espace(1974; 2013) e de Ibán Díaz Parra e Beltrán Roca Martínez, em livro intitulado El espacio en la teoría social. Una mirada multidisciplinar(2022), segundo indicam os(a) autores(as) no artigo.
5 Compreende-se que terruño se refere a um lugar de origem e/ou de pertencimento, uma “terra natal”, como sugerido na sequência, mas que traz consigo ainda um sentimento de afeto quando evocado.
6 Em The Condition of Postmodernity. An Enquiry into the Origens of Cultural Change [Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural], publicada originalmente em 1989. A data seguinte se refere à edição e tradução para o espanhol consultada pelo autor.
Referências
Álvarez Velasco, Soledad; Glockner Fagetti, Valentina (2018). “Niños, niñas y adolescentes migrantes y productores del espacio. Una aproximación a las dinámicas del corredor migratorio extendido Región Andina, Centroamérica, México y U.S.”. EntreDiversidades. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades, n. 11, págs. 37-70. ISSN: 2007-7602. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=455959694002. Acesso em 26 maio 2024.
Hirai, Shinji (2015). “’¡Sigue los símbolos del terruño!’: etnografía multilocal y migración transnacional”. In: Ariza, Marina; Velasco, Laura (Coords.). Métodos cualitativos y su aplicación empírica: por los caminos de la investigación sobre migración internacional. México: UNAM-IIS; Colegio de la Frontera Norte; DGAPA, 2015, págs. 81-111.
Miranda, Bruno; Gundelach, Jana S.; Rodríguez, Daniela (2023). “Diferencia y espera: migrantes africanos y asiáticos en Tapachula, frontera sur de México”. Diarios de Terruño. Reflexiones sobre migración y movilidad, n. 15, págs. 144-167. ISSN: 2448-6876.
Referências indicadas
Díaz Parra, Ibán; Roca Martínez, Beltrán (2022). El espacio en la teoría social. Una mirada multidisciplinar. Tirant Humanidades.
Harvey, David (2004). La condición de la posmodernidad: investigación sobre los orígenes del cambio cultural. Buenos Aires: Amorrortu.
Lefebvre, Henri (2013). La producción del espacio. Introducción y traducción de Emilio Martínez. Madrid:Capitán Swing Libros.
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